Os
motivos que faltavam
(11/fev/1999)
Então você está pensando em correr uma maratona, hein?[1]
Não bastam os seus problemas, os seus compromissos, o trabalho,
a faculdade, a(o) namorada(o), os filhos, o síndico, o cachorro
do vizinho, e você ainda quer correr uma maratona! Vai se esborrachar
treinando durante meses, agüentar sol, chuva, vento, frio, calor,
dor aqui, dor ali. Quando voltar esbagaçado de um treinamento, alguém
vai perguntar se você andou fazendo o seu cooperzinho. Nenhum
parente ou amigo vai levá-lo a sério, e alguns até
ficarão ofendidos quando você recusar um convite porque tem
de treinar. O médico vai reprová-lo porque você não
faz caminhadas, que é muito mais seguro, blablablá, ou natação,
que é muito mais completo, blablablá, blablablá. E
quando você finalmente correr o raio da maratona, chegará
horas depois do primeiro colocado, rezando para não escorregar naquele
tapete de copinhos plásticos e sendo ignorado pelos gatos pingados
que sobraram na platéia. Quer saber o que eu penso disso? Ótima
idéia!!
Se você já tem o hábito de correr, deve saber que eu
não estou exagerando. Correr é uma mistura sensações
boas e ruins. Mais boas, é verdade, mas não venha me dizer
que um final de lomba, aquele restinho que você só vê
depois que pensou que já tinha acabado, é bom. É nada.
Eu, pelo menos, odeio final de lomba, quase tanto quanto limpar os tênis.
E que tal acordar cedo para correr no domingo? Sair às 19h, noite
fechada, 10 ºC e garoando, para fazer os 10 km daquele dia? Ouvir
desaforos de idiotas que passam de automóvel ou, pior ainda, em
ônibus de torcedores? Lavar a roupa de corrida quase todo dia, tentando
inutilmente desencardir as meias brancas [2]? Gastar
rios de dinheiro em tênis de corrida, que parecem custar só
um pouco menos que os automóveis populares? Isso é apenas
uma amostra do lado ruim, experimentado por todos os corredores e não
apenas por candidatos a maratonista. Mas durante um treinamento para maratona,
as distâncias são maiores e todos esses problemas ficam, automaticamente,
mais acentuados.
Se você não sabia isso, talvez esteja se sentindo menos motivado.
Nesse caso, eu tenho duas coisas a dizer: Primeiro, não é
nada que não possa ser superado, se você tiver disposição
e saúde para tanto. Segundo, são exatamente essas dificuldades
que fazem o Desafio. Eu sei, você pensava que o desafio fosse correr
os 42,2 km, mas não é.
Pense num alpinista. Eu gosto da analogia porque, assim como o maratonista
não competitivo, o alpinista não tem nada a ganhar, exceto
a satisfação de fazer algo extraordinário. Ao chegar
ao pé da montanha, o alpinista tem diante de si duas dificuldades
básicas. Uma delas é o clima, sobre o qual ele não
possui controle algum (mesmo que tenha escolhido cuidadosamente a época
da escalada). A segunda dificuldade é a própria montanha.
Para enfrentá-la, o alpinista deverá ter aprimorado a sua
habilidade como escalador, ajustado o seu condicionamento físico,
adquirido todos os equipamentos e víveres necessários e estudado
as rotas, os obstáculos e os possíveis locais de acampamento.
Nada disso é fácil, mas se tiver atendido cada um desses
pré-requisitos, chegar ao cume será apenas uma conseqüência
natural (abstraindo-se, é claro, as ocorrências de clima adverso
e acidentes imprevisíveis).
A mesma coisa acontece com a maratona. Chegar ao fim de uma não
é uma tarefa fácil, assim como não é escalar
o Aconcágua. Mas o seu sucesso depende quase exclusivamente da preparação,
que é muito mais difícil, porque leva meses ou até
anos. Também pode-se imaginá-la como uma formatura universitária:
a cerimônia pode até ser longa e cansativa, mas o duro mesmo
é ser aprovado em todas as disciplinas. Então, o desafio
maior é concluir satisfatoriamente a preparação, e
não apenas terminar a maratona.
Ter uma clara consciência desse fato é o que pode levá-lo
em boas condições à linha de chegada. Saber que o
verdadeiro desafio é realizar cada um dos treinos programados lhes
atribui um significado muito maior do que o de uma corridinha descompromissada
de fim de semana (ou cooperzinho, como preferem os idosos). Ao entender
isso, você dará aos seus treinos uma importância semelhante
à que dá ao seu trabalho, ao qual você não costuma
faltar só porque não está muito a fim. Aliás,
você nunca sequer cogita de não ir trabalhar, a não
ser que esteja realmente doente.
Mas, afinal, o que tem de divertido nisso?
É verdade, até agora, eu só falei de problemas, dificuldades
e desafios; agora, vamos ao lado positivo. Alguns corredores afirmam que
correr os faz conhecer melhor a si mesmos, lhes dá segurança
e auto-estima, os ajuda a enfrentar melhor a vida e suas dificuldades e
os torna pessoas mais completas. Eu não iria tão longe (para
não dizer que acho isso uma papagaiada). No meu modesto ponto de
vista, há motivos muito mais palpáveis (e reais) para se
praticar esse esporte.
Primeiro, correr é uma atividade natural. As regras são as
mais simples possíveis, você não precisa de um instrutor,
nem de um juiz. É verdade que um treinador pode contribuir bastante
para atingir-se objetivos complexos, como correr a maratona, mas ele não
é imprescindível. Agora, tente aprender a nadar sozinho,
apenas lendo livros.
Segundo, para correr você não depende de mais ninguém.
Não é preciso ser sócio de nenhum clube, não
é preciso formar um time, não é preciso sequer conhecer
outros corredores. De novo, tudo isso pode tornar o ato de correr mais
agradável, mas nada é imprescindível. Você pode
alegar que depende, pelo menos, da administração pública,
que constrói os parques e as ciclovias onde você pode treinar.
E eu tenho de admitir que isso é verdade, porque correr na rua,
em meio aos carros, é enfrentar os mais perigosos psicopatas em
situação de absoluta desigualdade. Mas essa é uma
dependência fraca, e você dará um jeito mesmo que as
condições existentes para a corrida sejam péssimas
(e se você também mora em Porto Alegre, sabe muito bem do
que eu estou falando).
Terceiro, a corrida é um esporte onde é possível avaliar-se
com precisão o progresso obtido, e acompanhar esse progresso é
sempre extremamente motivador. Com a ajuda de um diário, que pode
ser um simples caderno ou um programa de computador, pode-se registrar
tempos, distâncias, e batimentos cardíacos médios,
além de inúmeras outras variáveis. Com esses dados,
pode-se construir estatísticas muito interessantes. Por exemplo,
eu uso o programa RunNotes [3] para registrar as minhas
corridas desde 1997. Com ele, eu posso descobrir que a minha velocidade
média em 97 foi de 9,93 km/h, passou para 10,98 km/h em 98 e está
em 11,47 km/h em 99. Já o meu rendimento cardíaco foi de
1,63 metros por batimento em 97, 1,76 m/b em 98 e 1,83 m/b em 99. Eu vejo
esses dados como uma espécie de conquista, à qual eu tenho
direito por ter me dedicado muito, e da qual não estou disposto
a abrir mão por razões que não sejam muito importantes.
Quarto, o próprio ato de correr pode ser prazeroso. Pode-se ouvir
música o tempo todo e pensar no que se quiser sem ser interrompido
por ninguém. Dependendo do ritmo adotado, pode-se perceber um esforço
físico forte e a capacidade plena do organismo de sustentá-lo,
e esse é uma sensação ótima. Mais raramente,
pode-se sentir o que na literatura especializada é conhecido como
runner's high (algo como "barato" de corredor), uma sensação
de euforia provavelmente relacionada à liberação no
organismo de substâncias analgésicas e calmantes como a endorfina
e a encefalina [NOA91].
Quinto, mesmo quando a corrida é difícil, com um esforço
físico muito grande, os momentos seguintes são extremamente
agradáveis. Pense, por exemplo, numa corrida no inverno de duas
horas, um banho quente depois, uma lazanha a seguir e, por fim, uma cama
macia e um jornal. Você provocando o sono até não poder
mais, sua mulher (ou seu marido) já ressonando a seu lado. Que maravilha!
E não fique achando que isso é sopa de pedra, que poderia
ser a mesma coisa sem a corrida. Nada disso. Jamais seria a mesma coisa
sem aquele cansaço gostoso e sem as endorfinas inundando o seu corpo.
Sexto, pelo simples fato de ser um corredor, você poderá entrar
em qualquer competição de rua, inclusive provas oficiais,
mesmo que não tenha a menor chance de vitória. Não
que os corredores nasçam com o ideal olímpico no coração,
achando que o importante é mesmo competir. Nada disso. Se pudessem,
todos dariam o sangue para rasgar a faixa de chegada. Mas o fato de não
ser geneticamente superdotado não o impede de esforçar-se
bastante para superar o seu próprio tempo, ou simplesmente chegar
ao fim da prova. E qualquer um desses resultados será um justo motivo
para comemoração. Para facilitar as coisas, ninguém
espera mesmo muito de você, o que lhe tira a responsabilidade dos
ombros e capacita-o a concentrar-se melhor na corrida e até corrê-la
em esforço submáximo, apenas para aproveitar o evento.
Sétimo, por falar em competições, em que outro esporte
você participa delas junto com a elite (fora o golfe, é claro)?
Na medida em que você for se interessando mais por corrida, você
saberá quem são os melhores atletas do momento. E vai vê-los
treinando e competindo, vai correr ao lado deles. Bem, ao lado deles
talvez seja muito otimista, mas, pelo menos vai aquecer junto e, teoricamente,
vai disputar o mesmo prêmio. Corresponde, se você se liga em
futebol, a jogar algumas partidas oficiais ao lado do Dunga [4],
ou disputar um torneio de tênis contra o Guga. Mesmo que você
não tenha a mais pálida e desprezível chance, não
deixará de sentir uma certa satisfação.
Ok, eu já sabia que correr era bom, mas por que uma maratona?
Ao ser indagado porque queria tanto subir ao cume do monte Everest, o inglês
George Mallory deu a resposta mais famosa da sua vida: - Porque ele
está lá! Mallory talvez não seja uma boa fonte de
inspiração para os candidatos a maratonista, porque ele não
teve sucesso, embora tenha deixado o seu nome gravado na história
do alpinismo, uma coisa que nem eu nem você faremos pela corrida
[5]. Mas a sua frase resume bem o sentimento em questão.
Como é possível ficar indiferente à maratona que é
organizada anualmente na sua cidade ou em alguma outra por perto, contanto
que você seja um corredor com aptidão para longas distâncias?
Como não se sentir desafiado pelas dificuldades? Como não
sentir um calafrio ao imaginar-se cruzando a linha de chegada? A maratona,
alguém já disse, é um Everest por ano, ao alcance
apenas daqueles que fizerem por merecê-lo.
Eu insisto, não vai ser fácil. Atendidos os pré-requisitos
(exame médico, tempo, ...) e montado um treinamento básico,
você terá ainda uma porção de dificuldades a
enfrentar, durante muitos meses. Quando os problemas começarem,
lembre-se disso: ninguém, em nenhum momento, disse que ia ser fácil.
Mas talvez nada seja tão difícil quanto dar o primeiro passo.
A propósito, John Bingham, colunista da revista Runner’s World,
tem um slogan muito simpático: “O milagre não é eu
ter terminado, é ter tido a coragem de começar”. As dificuldades
você superará, uma de cada vez. E, no final, você terá
deixado de ser um corredor. Você será um maratonista.
J
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