Pequenos
incômodos
(09/mai/1999)
Então você já começa a se imaginar treinando
para a maratona. Problema? O cansaço, é claro. Só
isso? Bom, correr de noite ou de manhã cedo pode ser chato, também.
Mais nada? Hã, deixa eu ver, sim, acho que umas bolhas no pé,
de vez em quando.
Você é um sujeito otimista [1]. Se tivesse
desafiado o Mike Tyson (e ele tivesse aceito), você provavelmente
estaria preocupado com a desconforto visual causado pela forte iluminação
do ringue. Não, meu bom homem, antes de começar um desatino
como treinar para uma maratona, é melhor conhecer um pouco do que
o espera.
Em primeiro lugar, é bom saber que algumas variáveis sem
importância em distâncias curtas tornam-se críticas
em distâncias longas. É como a física de Newton que
você aprendeu no colégio: para o nosso dia a dia, ela é
mais do que suficiente, mas se você acelerar o seu fusquinha até
chegar perto da velocidade da luz, aquelas leis que você deu duro
para decorar não valerão um quark [2].
Aliás, o que sobrar de vocês dois talvez não dê
um grande lucro na feirinha do sábado, também.
Há muitas dessas variáveis a ser consideradas. Em geral,
as conseqüências podem ser evitadas ou minimizadas com facilidade.
Mas algumas delas o incomodarão pelo resto da sua vida de maratonista.
Paciência, provavelmente é um preço barato para o retorno
obtido em saúde e bem estar.
Assaduras
Talvez você tenha experimentado esse desconforto uma ou duas vezes
nos últimos dez anos, mas, decididamente, se você dependesse
de assaduras para purgar os seus pecados, o Reino dos Céus estaria
cada vez mais distante. Contudo, fique tranqüilo. Isso se resolverá
tão logo a sua corrida longa passe um certo limite.
Na verdade, acho que há dois limites a considerar: para os mamilos
e para as coxas (ou virilhas). O quê, você exclama roxo
de indignação, mamilos assados?!? Mas eu sou é
macho! Bem, lamento informá-lo que essa praga assola corredores
dos dois sexos. Aliás, suspeito que seja pior para homens, já
que as mulheres podem contar com aquela proteção extra que,
se bem ajustada, pode atenuar bastante a fricção com a camiseta.
Da minha pequena e pouco importante experiência pessoal, eu diria
que
-
A assadura de mamilo dá uma dor
infernal, por até dois dias.
-
Quando a lesão é pequena,
ela pode não ser percebida durante a corrida. Mas quando você
vestir a camisa no dia seguinte, seus vizinhos acordarão com seus
gritos.
-
Para correr, prefira camisetas leves,
de tecido sintético (em polyester, por exemplo), às de algodão,
pois as primeiras deixam a umidade escorrer facilmente, enquanto as outras
ficam encharcadas, pesadas e ásperas o tempo inteiro.
-
Muitos corredores recomendam vaselina
como prevenção. Nunca experimentei porque sou eu quem lava
as minhas camisetas.
-
Eu recomendo uma tira de Micropore [3]
largo, de 9,7 cm (não gosto de números inteiros) sobre cada
mamilo. Mas os meus são pequenos, talvez você precise de algo
mais consistente [4].
As assaduras de coxa ou virilha também atormentam a vida de quem
resolve correr mais do que o bom senso recomenda. Assim como como ocorre
com os mamilos, a gravidade das lesões varia muito em função
da presença ou não de dobrinhas indevidas. Minhas observações,
pouco dignas de crédito, são as seguintes:
-
Cuecas de algodão ficam mais ásperas
a cada lavada, e acabam tornando-se uma lixa nº 220 (inclusive você
pode guardá-las para usar na próxima vez em que decidir pintar
a sua sala). Cuecas novas e apertadinhas funcionam melhor para mim (não
desmaiem, garotas).
-
Não sei o que se passa com roupas
de baixo sintéticas, pois sou alérgico a elas (diabo, acho
que estou revelando mais da minha intimidade do que deveria).
-
Muitos corredores recomendam vaselina
como prevenção. Nunca experimentei porque também sou
eu quem lava as minhas cuecas.
-
Quando o pior acontecer, esprema um tubo
de Hipoglós [3] generosamente sobre a área
afetada. Você finalmente vai entender como a geração
da fralda de pano conseguiu sobreviver. Mas não esqueça de
usar suas cuecas (calcinhas) velhas quando fizer isso, de preferência
aquelas que estão prontas para ir para o lixo.
Calos, bolhas
e unhas pretas
Sim, estamos falando dos seus pezinhos mimosos, que mamãe beijou
e passou talquinho. Comece a correr muito e eles ficarão irreconhecíveis.
Se, é claro, você se descuidar. Se comprar um tênis
apertado, ou um tênis muito folgado, ou usar uma meia Rala&Raspa.
Aliás, as meias velhas também têm um efeito abrasivo
considerável.
Bem, mas se você estava se roendo de vontade de ouvir a minha opinião
altamente abalizada sobre esses assuntos, deu-se mal. Só tive problemas
desse tipo em dois momentos, ambos altamente reveladores do meu quociente
de inteligência: (1) quando comprei um tênis apertado e (2)
quando eu teimava em não parar de correr para tirar uma pedrinha
irritante do tênis. No primeiro caso, eu resolvi o problema com facilidade:
passei a usar duas meias e nunca mais tive bolhas, por duas razões.
Primeiro, porque o atrito no meu pé diminuiu, e segundo, porque
o tênis, que já era apertado, ficou insuportável, e
eu acabei tendo de comprar um maior. Simples, não é? Já,
no segundo caso, aposto que você já sabe como foi que eu resolvi.
Já que toda a minha experiência se resume a esses surtos de
idiotia, terei de recorrer ao consultor da Runner's World e autor de um
livro sobre lesões de corredores [ELL94],
o assombroso Dr. Joe Ellis [5]. Segundo ele, há
duas causas possíveis para esses problemas: tênis inadequado
ou irregularidades ortopédicas. Parece óbvio, mas isso sugere
que, dependendo do caso, talvez não exista um tênis ao qual
o corredor consiga se ajustar perfeitamente. Pelo menos, não antes
de ter o seu problema corrigido.
Como você já sabia perfeitamente, calos e bolhas têm
uma causa comum. Eles geralmente resultam da exposição da
pele a um processo de fricção. No caso da bolha, a fricção
provoca a separação das camadas externas da pele, o que forma
um espaço que será preenchido por um fluido (que pode ser
sangue, dependendo da gravidade da lesão). Calos têm a mesma
causa, mas têm origem na reação do organismo para evitar
bolhas. Mas essa reação pode ser exagerada, levando o calo
a crescer tanto que ele próprio se torna uma fonte de dor.
Em relação a unhas pretas, não, eu não estava
suspeitando do seu asseio esmerado. O que acontece é que o impacto
freqüente das unhas contra a superfície interna do tênis
pode irritá-las e, se o trauma for suficientemente grande, pode
provocar um sangramento. Esse sangramento é que dá à
unha aquele bonito e vistoso tom escuro, que pode durar semanas ou até
meses [6]. Essa é uma queixa constante dos ultracorredores,
mas pode afligir atletas mais modestos também.
A seguir, estão algumas dicas do Dr. Ellis para evitar e tratar
esses problemas. Se essas tentativas não funcionarem, isso não
significa que você esteja condenado a ser um mero andador. Apenas
ache um médico que esteja capacitado a tratá-lo adequadamente
(não pense que necessariamente será o primeiro que você
achar).
-
Se o bico do tênis está
apertando, uma solução muito simples pode ser a troca do
sistema de enfiamento do cadarço. Por exemplo, o enfiamento em Z
tende a puxar o bico do tênis para cima, dando mais espaço
aos dedos. O mesmo não ocorre com o enfiamento em X. Obs: Z e X
são as letras formadas pelo cadarço quando se olha um conjunto
de quatro furos (dois de cada lado) de cima.
-
Proteções específicas
para calos (Dr. Scholl ou similares) podem ajudar.
-
Meias duplas (nunca vi a venda por aqui)
ou duas meias finas (minha opinião) podem ajudar também.
-
Troca de tênis: eles devem ser
suficientemente folgados para você sentir um vazio ao apertar na
frente do dedão, mas não tanto que seus pés possam
executar uma dessas danças baianas descartáveis lá
dentro.
Água
Como é que água pode ser uma incomodação, você
deve estar se perguntando. Mas, ao mesmo tempo, algo lhe diz que eu tenho
uma boa razão para ter posto este item aqui. De fato, é simples.
Enquanto você dava aquelas corridinhas (desculpe o tom de desprezo)
de 30 ou 60 minutos, nunca lhe ocorreu beber durante a corrida, a não
ser sob calor extremo. Infelizmente, essa moleza acaba para corridas longas.
Em um outro artigo, eu apresentarei uma longa, tediosa e extenuante argumentação
sobre hidratação. Por ora, e já que você não
vai mesmo ler esse outro artigo, basta dizer que ela é necessária
antes, durante e depois das corridas longas. Beber antes e depois não
é problema, claro, mas beber durante pode exigir um planejamento
complexo.
Suponha que você tenha um lugar agradável para correr, talvez
um parque grande, como muitos bebedouros ao longo do caminho. Problema
resolvido? De jeito nenhum. Imagine-se parando a cada 15 ou 20 minutos
para beber (tanto assim?!? - você se escandaliza). Impossível.
Ainda mais porque você está no Brasil, onde parques com bebedouros
em abundância são tão raros quanto zebus de dois cupins.
Qual a solução, então? Levar a água (ou hidratante)
junto. Um galão nas costas? Nada disso, espertinho. Leia com atenção
as dicas espetaculares a seguir:
-
Use um suporte de garrafa. Trata-se de
uma espécie de cinto, com um bolso semi-rígido onde se coloca
uma garrafa dessas usadas pelos camaradas ciclistas. Ao escolher o cinto,
prefira os mais largos, com um suporte que se ajuste bem às suas
curvas lombares, para que ele não fique sacudindo o tempo inteiro
e se transforme num tormento. Eu uso o modelo Solo, da Ultimate Direction
[7], e não tenho nenhuma queixa.
-
A garrafa tem de ser enchida periodicamente
(eu, por exemplo, tomo uma garrafa de 600 ml a cada 45 minutos), mas umas
poucas interrupções são plenamente toleráveis.
Se você preferir, pode deixar as garrafas já preparadas (no
seu carro, por exemplo) e apenas ir substituindo as vazias. Se elas estiverem
em um isopor com gelo, melhor ainda.
-
Existem outros tipos de reservatórios,
que são sacos plásticos resistentes, que são fixados
à cintura ou às costas, como se fosse uma mochila. Nunca
usei nenhum, mas não custar dar uma olhada. Um fabricante
conhecido é o Camebak.
Frio
Eu não precisaria falar do aborrecimento que pode ser o clima da
sua região, afinal, você o conhece melhor do que eu. Mas se
não está acostumado a correr longas distâncias, talvez
ainda não tenha se dado conta do quanto ele pode ser desagradável.
Suponhamos que você saia para correr numa manhã fria, com
uma temperatura de 10ºC. Como você detesta sentir frio, vestirá
antes aquele seu agasalho esportivo comprado especialmente para essas ocasiões.
Se o seu objetivo é correr alguns minutos, tudo bem. Você
terminará a corrida com um calor infernal, mas provavelmente não
terá chegará a ter desidratação nem sofrerá
um superaquecimento do seu organismo. Mas se você pretende correr
duas horas, esqueça.
Ocorre que o seu corpo é altamente ineficiente no que diz respeito
à conversão de energia química (obtida dos alimentos)
em energia mecânica (o movimento muscular que produz a corrida).
Simplesmente, menos de 30% da energia química é convertida
em mecânica, o resto é perdido sob a forma de calor. Ou seja,
ao correr, o seu corpo se transforma numa fornalha, e você não
precisa de muita roupa para se proteger do frio.
Para medir o coeficiente de isolamento térmico proporcionado por
uma peça de roupa é usada a unidade CLO. Um CLO é
definido como sendo o suficiente para manter uma pessoa confortável
numa temperatura de 21ºC, com 50% de umidade relativa do ar, quando
ela está em repouso. Um esquimó, no Alaska, precisa de 10
a 12 CLO de isolamento para não virar uma estátua. Teste
rápido: quantos CLO você precisa para correr quando a temperatura
é de -22ºC, sem vento?
Resposta: Um. Isso mesmo, 1. Está na bíblia [NOA91].
Isso explica porque uma, ou no máximo duas camisetas são
suficientes para correr no nosso clima quando faz frio (e eu corro em Porto
Alegre, não esqueça disso). É claro que algumas extremidades,
como as mãos e a cabeça, não são tão
afetadas pela geração de calor nos músculos do corpo,
e elas podem ter uma proteção extra, como luvas e um boné.
Em dias muito frios, você pode tentar a dica que eu li na Rec.running,
para evitar congelamento das extremidades exclusivamente masculinas: enfie
tudo dentro de uma meia. Eu nunca experimentei, mas talvez funcione. Só
não use meia de lã, que deve ser um inferno.
Fique sabendo, porém, que sentir frio no início será
inevitável, a não ser que você possa começar
com um abrigo e livrar-se dele após alguns minutos. Também
considere que, se estiver ventando ou chovendo, a sua necessidade de proteção
será muito maior. E nunca esqueça de tomar a vacina contra
a gripe no início do ano. Antes de ela aparecer por aqui, eu tinha
de suspender minhas corridas no inverno, sob pena de ficar semanas em estado
lamentável. De alguns anos para cá, corro o inverno inteiro,
mesmo nos dias mais horripilantes, e não tenho nada além
de alguns resfriados leves. Eu rrecomeindo, como diriam os amigos
de São Paulo.
Só isso?
Não, ainda tem mais. Se você vai correr uma longa (acima de
20 km) no domingo, é melhor não comer aquele churrasco maravilhoso
no sábado à noite. Seus amigos vão ficar p da vida,
mas você vai conseguir terminar o treino do dia seguinte. Também
evite álcool, pois ele tem um efeito desidratante, assim como a
cafeína.
O tempo que você vai gastar em treino é muito maior do que
o da corrida em si. Some a ele o tempo de deslocamento, troca de roupa,
alongamento, aquecimento, desaquecimento, realongamento, banho e deslocamento
e você terá, em alguns casos, o dobro do que tinha combinado
com a sua mulher ("só uma corridinha de uma hora..."). Se
isso não for muito bem acertado com a sua família, sua corrida
se transformará numa fonte permanente de conflitos domésticos.
Você vai passar a conviver com dores. Às vezes grandes, a
maior parte delas pequenas. Eventualmente, vai achar que pode conviver
muito tempo com uma dor grande e vai quebrar a cara (ou a perna, literalmente).
Vai ter de usar gelo freqüentemente. Talvez tenha de visitar um médico
que vai fazer um diagnóstico errado e prejudicar a sua corrida e
a sua recuperação ao mesmo tempo.
Enfim, a vida de um corredor de longa distância tem alguns dissabores
bem conhecidos, e eu só listei uns poucos. Se você se sentiu
um tanto desmotivado depois de ler tudo isso, saiba que economizou um tempo
precioso. Agora você pode pular a fase de candidato a maratonista
diretamente para pré-especialista em bocha ou minigolfe. Mas se
você se sentiu desafiado por essas dificuldades, e acha que pode
vencê-las uma a uma, com paciência, bom senso e disciplina,
seja bem-vindo à turma, colega. Nos vemos numa maratona, qualquer
dia desses. J
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